Com um dia de atraso ...
FELIZ DIA DAS AVÓS !!!

As doçuras de ser avó:
“Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada
para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um
ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do
matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho
apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu
sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo... Quarenta anos,
quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o
tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer,
é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações — todos
dizem isto embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto — mas
acredita. Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos,
às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de
paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A
saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto
com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O
tumulto da presença infantil ao seu redor. Meus Deus, para onde foram
as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são seus
filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a
prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas.
São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda. E então
um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação
ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis
— aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades,
símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de
ser um estranho, é um menino que lhe é "devolvido". E o espantoso é que
todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao
contrário causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse
imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava,
desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza que a vida nos
dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela
velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele
lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás,
desconfio muito de que os netos são melhores que namorados, pois que as
violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. No entanto
— no entanto! — nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de
tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela , em
si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser mãe do garoto. Não importa
que ela, hipocritamente ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar
de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente
acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é
rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó
representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e
da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da
domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer,
dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da
rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar. Já a avô, não tem
direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora
em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a
passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor
pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o
último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de
rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina,
tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o
proibido e o permitido. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e
comer croquetes, tomar café — café! — mexer no armário da louça, fazer
trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do
gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser e até fingir
que está discando o telefone. Riscar a parece com o lápis dizendo que
foi sem querer — e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez
de apanhar, ir para os braços da avó e de lá escutar os debates sobre
os perigos e os erros da educação moderna. Sabe-se que, no reino dos
céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma.
Porém esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos
dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você
ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será
defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes
magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto. E
quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe
reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como
pão ao forno. E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na
hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você
não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional
cumplicidade... Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se
intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque
o menininho — involuntariamente! — bateu com a bola nele. Está quebrado
e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na
mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois, o
sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a
bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é
relíquia: não tem dinheiro que pague.”
A Arte de Ser Avó
Raquel de Queiroz